

Por Gabriel Ronan e William Araújo
“Estendendo o dedo para o meu rosto, ele disse: cuidado com o que a senhora vai falar daqui pra frente”.
Essa é uma das lembranças da pedagoga aposentada Maria das Mercês Moura Martins ao ser detida pelos militares do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em 1972, no governo de Emílio Garrastazu Médici.
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Aos 85 anos, Dona Mercês, como é conhecida em Venda Nova, mora no Bairro Piratininga e, por causa de sua busca por uma educação melhor para a região, guarda várias histórias de repressão durante o período militar (1964-1985).
Uma delas se inicia em setembro de 1972, cerca de quatro anos após a outorga do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), quando Dona Mercês dirigia, em Venda Nova, as classes desanexadas da Escola Afonso Pena Mascarenhas, chamadas de Grupo Djanira Rodrigues de Oliveira. À época, ela conta que os alunos do colégio viviam em condições precárias, em salas sem energia elétrica, sem janelas, sem portas de madeira, com escassez de alimentos e materiais.
“Temos só 65 pratos para 550 alunos, sendo que 15 foram doados pelas professoras. As colheres são apenas 30, e recipientes vazios de iogurte servem de canecos. As crianças têm que comer depressa para que as vasilhas sejam lavadas e passadas às que aguardam na fila” – trecho retirado da matéria publicada no Jornal do Brasil (24/09/1972).
Além disso, os pais, estudantes e funcionários precisavam atravessar o Córrego Vilarinho para chegar à escola. Sem saneamento, essas pessoas ainda estavam expostas à xistose, também conhecida como esquistossomose ou barriga d’água, relata a pedagoga.
Diante das dificuldades, Dona Mercês, endossada pelas professoras do colégio, decidiu agir por conta própria: intercedeu junto aos órgãos públicos para que fosse construída uma ponte (erguida meses depois); adaptou-se à lei que obrigava as escolas a servirem merenda aos alunos (mas não garantia quem serviria), solicitou ajuda aos comerciantes da Regional e aliava-se à solidariedade e vontade de educar das colegas profissionais. Esse virou o cotidiano das professoras do Grupo Escolar Djanira R. de Oliveira.


Quando um jornalista, em visita ao Serviço Social do Comércio (Sesc Venda Nova), embarcou, coincidentemente, no mesmo ônibus que as professoras, ouviu o pedido das docentes e foi até a escola para constatar as mazelas que relataram.
Lá, Dona Mercês, atual diretora, acreditando na justiça de suas palavras, “abriu o verbo” para o Jornal do Brasil. A matéria “Aulas acabam mais cedo em grupo de B. Horizonte por falta de luz (pág 34)” foi publicada no domingo, 24 de setembro de 1972, data do aniversário da pedagoga, e denunciava as negligências do líder Executivo estadual Rondon Pacheco e da Secretaria de Educação.
“Eu disse para ele ao final das perguntas: ‘mesmo assim (com as condições precárias da escola), aqui está hasteada a bandeira nacional e o retrato do governador'”


O governo militar não perdeu tempo. No dia seguinte à publicação (segunda-feira), logo pela manhã, o Exército estacionou um jipe em frente a residência de Dona Mercês e aguardou, pacientemente, a saída da diretora. Ela foi conduzida ao quartel-general da Rua Santa Catarina, no Centro da cidade, onde ficou detida das 8h às 17h, cercada de microfones.
Enquanto aguardava, os militares vasculharam toda a vida da diretora e família, mas, por sorte, o marechal Amaury Kruel não achou nada considerado importante. Antes de ser liberada, a mensagem que abre este texto, dita por um militar do DOPS, ecoou pela sala inspecionada. A data 25 de setembro ficou marcada na vida da aposentada como o início da repressão.
Vivendo a perseguição
Apesar de não custar prejuízos físicos a Dona Mercês, o governo militar continuou acompanhando a trajetória da pedagoga durante seis meses. O DOPS vigiou cada passo dela, até realizar uma nova abordagem no fim de 1972.
“Eu passei a ser acompanhada por pessoas do DOPS por seis meses. Todo lugar que ia, eles apareciam me acompanhando. Isso não me intimidava. Eu ria para eles ironicamente e eles sorriam de volta”
Nesse dia, a diretora escolar estava reunida com outras lideranças de Venda Nova em uma área cedida pela Igreja Católica para palestrar sobre a saúde infantil no meio escolar. Ao lado dela, estavam médicos que integrariam o primeiro centro de saúde da região.


Ingênua, segundo suas próprias palavras, Dona Mercês não tinha conhecimento de três agentes do Exército que a observavam nas imediações. Contou aos presentes sobre o caso de um garoto que há muito tempo estava tentando uma vaga nas escolas da Regional, mas só conseguiu porque tinha se aposentado.
Perplexa com o que o menino havia dito, questionou a ele: “como se aposenta um jovem de 14 anos?” O garoto respondeu: “eu estava trabalhando em uma gráfica e a máquina cortou meus dedos (mostrando a mão a Dona Mercês), por isso consegui me aposentar e ter uma vaga para estudar”.
Abalada e indignada, Dona Mercês disse na palestra: “uma pátria em que um menino precisa perder os dedos e se aposentar para conseguir estudar não merece hastear bandeira”.
Tão logo a pedagoga disse a frase, os agentes do DOPS se apresentaram com armas e tentaram levá-la novamente. A repressão falhou graças à ação dos médicos, que cercaram a educadora e a escoltaram até o carro do seu marido, Osael Bastos Martins, que aguardava do lado de fora do terreno e deu fuga à esposa.
Mais tarde, quando ela imaginou estar livre, participou com o marido de uma reunião sobre apartamentos, dos quais os compradores estavam queixosos pelos valores absurdos que eram cobrados. Ela era a única mulher no recinto e decidiu expor a opinião.
Rapidamente, dois homens armados invadiram o salão e questionaram os rumos da reunião. Dona Mercês precisou se explicar e dizer que se tratava de um encontro familiar sobre moradia, mas como os apartamentos eram de um projeto do governo, eles encerraram a discussão e mandaram todos embora.
“Como diretora de escola, eu sentia que era minha obrigação estar ali. Houve um susto muito grande por parte de todos. Eu era a única mulher presente, ao lado do meu marido, e pensei que, por isso, seria a única que eles iriam respeitar”


Uma vida pela educação
Aposentada em 1988, Maria das Mercês foi diretora e co-diretora de quatro escolas em Venda Nova. Ela também lecionou na Região Nordeste do país, onde alfabetizou diversas crianças e jovens.
Atualmente, Dona Mercês se apresenta como uma das integrantes do Conselho de Venda Nova (Convem), que tem, entre outros objetivos, a missão de restaurar o meio ambiente da região.
O Grupo Escolar Djanira Rodrigues de Oliveira, que ficava na Rua 17, no Bairro Jardim Estrela – atual Bairro Novo Letícia -, mudou de endereço e foi construído no Bairro Jardim dos Comerciários com o esforço das várias professoras que atuaram ali durante o regime militar.
Agradecimentos
Obrigado, Zé Teixeira e Palhaço Limão (Vagner Silva), por terem apresentado a senhora Maria das Mercês. Agradecemos às professoras do Grupo Escolar e, principalmente, à senhora Maria das Mercês por ter nos recebido com muito carinho e educação, pela qual sempre lutou em Venda Nova.
*Todos os relatos descritos acima foram dados pela própria Maria das Mercês Moura Martins em entrevista concedida em sua casa. As datas foram checadas via registros cedidos pela mesma e pesquisa documental feita pelos jornalistas.
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